Contratos e a ética na moda


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Por Renata D. B. Munhoz Soares



A moda é um processo que passa por inúmeras fases até chegar ao mercado de consumo (ou mesmo até o pós-consumo), e não se resume só à proteção ao estilista ou ao desenho, que se situa no início dessa cadeia, mas também à fabricação, distribuição, importação e, especialmente, aos mecanismos contratuais que garantem essas relações.

O contrato, além de ser um instrumento necessário e imprescindível para se colocar em prática os negócios da indústria da moda, também possui mecanismos que retratam as novas tendências desse segmento.

É possível pensar hoje em moda sem falar em sustentabilidade ambiental, ética, credibilidade e confiança?

Não podemos mais pensar num contrato como expressão apenas de interesses estritamente individuais (como o lucro, por exemplo), mas sim como resultado de uma preocupação com os valores sociais e coletivos, como o respeito ao meio ambiente (consciência ecológica, não poluição da água, produção de calça jeans com economia de água, saúde da população, não poluição do ar, utilização de novas tecnologias, produtos sustentáveis, etc.).

No entanto, não é só nesse viés que a função social do contrato atua. Quando um terceiro que não participou do contrato instiga o devedor a não cumprir a obrigação a seu cargo; ou ainda, quando o terceiro celebra com o devedor um contrato incompatível com o adimplemento, por parte deste, da obrigação assumida com o credor, também falamos em violação da função social (SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. A tutela externa de crédito e o papel do terceiro no contrato: uma reflexão comparativa dos modelos creditício e proprietário. In: PEREIRA, Ademar; THEOPHILO NETO, Nuncio; DAMIÃO, Regina Toledo (coords.). O Direito na Atualidade. São Paulo: Rideel, 2011, p. 42-58). Nesse sentido, temos o exemplo da figura do aliciamento no contrato de prestação de serviços (art. 608, do Código Civil Brasileiro) e da concorrência desleal.

Assim, diz o art. 608, da nossa legislação civil – “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”.

Nos tempos atuais, a moda denominada “ética” reflete num contrato baseado na boa-fé objetiva – princípio contratual previsto no art. 422, do Código Civil, ou seja, em parâmetros de lealdade, honestidade, fidelidade, colaboração, cuidado, informação e respeito ao segredo e sigilo, exigido de ambos os pólos da relação contratual (SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. A boa-fé objetiva e o inadimplemento do contrato. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: LTr, 2008).

E tal postura pode se concretizar não só na fase contratual propriamente dita, como na previsão de cláusulas contratuais, como as de anticorrupção, exclusividade, fidelidade, sigilo e não aliciamento. Note-se que as vitrines de lojas e estabelecimentos comerciais são o reflexo da fase pré-contratual. E quem não se lembra de exemplos de recall de carros, medicamentos, alimentos, cosméticos, etc.? São práticas mundiais decorrentes da imposição de deveres éticos na fase pós-contratual. 

Lembram Susan Scafidi e Jeff Trexler (Fashion Law Institute of New York at Fordahm Law School), que moda ética é “um enfoque baseado no desenho, abastecimento e fabricação de roupas de vestir que aumenta os benefícios da sociedade e comunidades enquanto reduz o impacto sobre o meio ambiente.” e que “toda moda é de alguma maneira uma expressão de valores éticos”, tendo como objetivo principal “relacionar-se com outros de uma maneira que inspire confiança” (SCAFIDI, Susan; TREXLER, Jeff. O aspecto ético da moda. In: ECHEVERRIA, Pamela; SANTO, André Mendes Espírito. (coord.). Moda, Luxo e Direito.Buenos Aires: Albremática, 2016).

A boa-fé objetiva tem sido fundamento de novas formas de inadimplemento contratual consagradas pela doutrina e jurisprudência brasileiras, como a violação positiva do contrato pelo descumprimento de deveres anexos, o adimplemento substancial do contrato ou inadimplemento mínimo e o inadimplemento antecipado, como mencionado na r. decisão abaixo transcrita (SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Perspectivas do Inadimplemento Contratual. In: MESSA, Ana Flávia Messa; MAC CRACKEN, Roberto Nussinkis (coords.). Tendências Jurídicas Contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 159-178).

Ementa: “ECONCORRÊNCIA DESLEAL COMPRA E VENDA DE MOBILIÁRIO E DE ESTOQUE, COM CESSÃO DE MARCA. ANTECEDENTE CONSTITUIÇÃO DE PESSOA JURÍDICA COM DENOMINAÇÃO SEMELHANTE À CEDIDA EM NOME DOS FILHOS DOS SÓCIOS DA RÉ. 1. A vedação à concorrência desleal tem relação com o princípio instrumental da boa-fé objetiva. Espera-se das partes contratantes, mesmo nos contratos anteriores ao CC/02, a observância da boa-fé. 2. Pouco tempo antes do negócio firmado entre as partes, de venda de mobiliário e de estoque com cessão da marca, os filhos dos sócios da ré constituíram nova sociedade com semelhantes denominação social e objeto social. Indicação de unidade negocial e de ingerência de toda a família em ambas as empresas. 3. A constituição da nova empresa em nome dos filhos dos sócios da ré, com semelhante denominação e objeto social, alguns meses antes do negócio com a autora, demonstrou que os sócios não pretendiam deixar o mercado em que atuavam. Concorrência desleal. Atos confusórios. Prejuízo à clientela da autora, que faz parte do aviamento. 4. A preordenação dos sócios da ré indicou inadimplemento antecipado do ajuste. 5. Cláusulas contratuais. Descumprimento pela ré. A autora glosou peças com defeitos, que não foram descontadas pela ré. A ré também tentou recuperar peças para devolvê-las à lista de vendas. A ré tampouco transferiu o tronco telefónico e quitou as dívidas trabalhistas até a data marcada no ajuste. 6. Resolução do contrato. Retorno das partes ao estado anterior ao ajuste. Devolução das mercadorias pela autora e devolução dos valores recebidos pela ré. 7. dano moral. Não caracterização. Ausência de comprovação quanto à ofensa ao nome, boa fama ou reputação da autora. Recurso da autora parcialmente provido, prejudicado o recurso da ré.” (Rel. Des. Jesus Lofrano, TJSP).

De grande repercussão no mundo da moda tem sido a incidência de “cláusulas de raio” nos contratos de shopping centers, que visam impedir que o lojista-locatário explore outro estabelecimento do mesmo ramo, dentro de certa distância do shopping center – normalmente, dois quilômetros -, a não ser com expressa concordância do empreendedor (Caso Shopping Iguatemi x Shopping Eldorado). Para o Poder Judiciário, trata-se de prática que afrontaria os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, embora seria válida a cláusula desde que observasse o princípio da razoabilidade (SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. Cláusulas de raio: incidência e aplicação nos contratos de shoppings centers. In: SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz Soares (coord.). Direito e Casos Reais, Cinema, Literatura e Música. Uma nova forma de ver o direito civil. São Paulo: LTr, 2014, p. 21-43).

Por fim, importante para contratos de compra e venda na indústria da moda são os pactos adjetos, especialmente a venda a contento do comprador (art. 509, do Código Civil Brasileiro) e a venda sujeita à prova (art. 510, do Código Civil Brasileiro).

Podemos ressaltar que: “Na indústria têxtil, há um profissional que se dedica a aferir previamente a qualidade das peças vendidas a grosso para os ateliês e fabricantes de roupas de alta costura. As compras só se aperfeiçoam quando esse especialista faz o exame conhecido por touch and feel (tocar e sentir), um leve transpassar de dedos por cada lote de peça, para saber se a coisa o satisfaz.”

O que se percebe, portanto, é que o mercado da moda, em todo o seu iter, propugna por uma contratação baseada na confiança, no dinamismo das relações e nas novas tendências e formas de atuação dos parceiros contratuais.


Renata Domingues Balbino Munhoz Soares
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
    Professora da Faculdade de Direito Mackenzie e Coordenadora do Grupo de Estudo de Contratos e Fashion       Law
São Paulo - Brasil
 renatamunhoz@mackenzie.br